ARTIGO: DIREITO À INTIMIDADE E PRIVACIDADE NA SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO

Por Daniel Carlos Machado (DCM Advogados) em 03/04/2023
ARTIGO: DIREITO À INTIMIDADE E PRIVACIDADE NA SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO

DIREITO À INTIMIDADE E PRIVACIDADE NA SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO

 

Daniel Carlos Machado[1]

Ana Elizabeth Lapa Wanderley Cavalcanti[2]

 

Resumo

 

O presente artigo visa analisar os direitos à privacidade e intimidade, como direitos de personalidade, previstos no Código Civil, e fundamentais protegidos constitucionalmente, sua relação com o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, bem como os conflitos gerados quando diante do direito à informação e liberdade de expressão, também protegidos pela nossa Constituição Federal. Tudo isso levando em consideração a sociedade da informação e os novos meios de comunicação e exposição da vida privada e intimidade das pessoas. Com os novos hábitos e tendências decorrentes da também denominada sociedade da vigilância, será abordada a proteção de dados e sua relação com os direitos de personalidade e direitos fundamentais. Para a elaboração do presente trabalho foi utilizado o método jurídico teórico e o raciocínio dedutivo.

 

Palavras-chave: Direito à Privacidade; Direito à Intimidade; Proteção de Dados; Direito Fundamental; Direito de Personalidade.

 

Abstract

 

This paper aims to analyze the rights to privacy and intimacy, as personality and fundamental rights, constitutionally protected, their relationship with the Principle of the Dignity of the Human Person, as well as the conflicts generated when the right to information and freedom of expression, also protected by our Federal Constitution. All this taking into account the information society and new means of communication and exposure of people's private lives and intimacy. With the new habits and trends arising from the so-called surveillance society, we will address data protection and its relationship to personality rights and fundamental rights. For the preparation of this work, the theoretical legal method and deductive reasoning were used.

 

Key words: Right to Privacy; Right to Intimacy; Data Protection; Fundamental right; Personality Right.

 

Introdução

 

No mundo digital o privado e o público muitas vezes parecem se confundir, dando margem para que, sob diversos argumentos, a esfera da vida privada do indivíduo seja invadida e seus dados, imagem e informações pessoais sejam utilizados de forma abusiva.

 

Com relação a esse aparente conflito, temos de um lado, a ordem jurídica e constitucional garantindo o direito fundamental à informação e liberdade de expressão, superdimensionado pelo uso da internet, novas tecnologias e desenvolvimento da informática; E de outro, os direitos de personalidade, também protegidos pelo ordenamento jurídico brasileiro, acabam por vezes sendo relativizados em decorrência da monitoração da vida privada em todas as esferas, em flagrante desapreço ao direito de privacidade.

 

Isso porque, os meios tecnológicos proporcionam a vigilância dos cidadãos por meio da guarda de registros e do acesso a informações extremamente pessoais. Assim, a efetivação do direito à informação e as violações à privacidade, dependem da maneira como a internet é utilizada.

 

E se não houver controle sobre as ofensas à privacidade pelo uso da internet, há quem pense até mesmo que ninguém se preocupará em levantar questões sobre a intimidade, havendo uma aceitação de que não há privacidade no ambiente da internet, o que não se pode admitir como uma verdade.

 

O direito à informação, segundo Carlos Alberto Molinaro[3] , quando opera como direito subjetivo,

é um direito de defesa de modo que seu titular não seja impedido de emitir ou difundir suas ideias, ideais, opiniões, sentimentos ou conhecimentos. Na dimensão objetiva, o direito à informação postula prestações, tanto de natureza informacional, quanto no âmbito dos deveres estatais de proteção, mediante a edição de normas de cunho procedimental e organizacional, vinculando todos os órgãos estatais, notadamente os jurisdicionais aos quais está deferido o cuidado para a concretização dos direitos e interesses postos em causa.

 

Na Constituição Federal, o direito à informação vem previsto no Art. 5º, IV:

 

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...)

IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; (...)

 

Tendo o inciso IX vedado expressamente a censura, nos seguintes termos: “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença; (...)”. Ainda, de acordo com o que preconiza o Art. 220 da CF/88, a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição:

 

Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.

 

§ 1º Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.

 

§ 2º É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.

(...)

§ 6º A publicação de veículo impresso de comunicação independe de licença de autoridade.

 

Pensando sob o aspecto do acesso à informação, com a utilização da internet, as informações passaram a ser transmitidas instantaneamente e de qualquer lugar, adquirindo uma dimensão inimaginável., e esse avanço incessante gera a violação da privacidade, pois torna de conhecimento e acesso público as informações privadas de usuários e consumidores, além de dados e imagens.

 

Por conta dessas questões, é justamente neste cenário em que o acesso à informação constitui o maior valor da sociedade democrática, que as questões da garantia da intimidade e a divulgação indiscriminada de informação necessitam ser repensados. Sabemos que a internet apresenta-se essencial e útil para a vida num mundo globalizado (no sentido econômico, social, político, cultural, pessoal), mas em contrapartida, pode trazer consequências desastrosas para a vida privada, pois acaba por cercear a liberdade das pessoas em consequência da velocidade e fluidez com que as informações são transmitidas.

 

Tendo falado um pouco sobre a informação e seu acesso, importante falarmos especificamente sobre os direitos da personalidade, considerando o direito à privacidade e o direito a proteção de dados pessoais amparado pela LGPD.

 

Privacidade na era digital: direito da personalidade e fundamental

 

De início, iremos passar de forma breve pelos direitos da personalidade para fazer a conexão com o direito à privacidade na era digital. O grande passo para a proteção dos direitos da personalidade foi dado com o advento da Constituição Federal de 1988, que expressamente a eles se refere no art. 5º, X, nestes termos: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.

 

Conforme menciona Pablo Stolze[4], “conceituam-se os direitos da personalidade como aqueles que têm por objeto os atributos físicos, psíquicos e morais da pessoa em si e em suas projeções sociais”. O ordenamento jurídico reconhecendo tais direitos visa exatamente proteger a defesa de valores inatos ao homem, como a vida, a intimidade, a honra, dentre outros.

 

Em síntese, segundo Flávio Tartuce, “pode-se afirmar que os direitos da personalidade são aqueles inerentes à pessoa e à sua dignidade (art. 1.º, III, da CF/1988)”[5], sendo eles inatos (pertence ao ser humano desde o seu nascimento), ilimitados (ante a impossibilidade de se imaginar um número fechado de direitos da personalidade), absolutos (com eficácia erga omnes - contra todos -, principalmente se confrontados com os direitos pessoais puros, caso dos direitos obrigacionais e contratuais), intransmissível, imprescritível, impenhorável, indisponíveis, irrenunciáveis e não sujeito à desapropriação (porque não pode ser desvinculado de cada pessoa, dada sua condição de direito fundamental), e vitalício (porque acompanha a pessoa durante toda a sua existência).

 

O direito à privacidade é um direito de personalidade contra intromissões na vida privada e intimidade, que necessita cada vez mais de proteção para, efetivamente, garantir a dignidade humana. Na sociedade da informação, na atual era digital em que vivemos, a internet apresenta muita utilidade no que se refere a transmissão de informações, relações sociais, exercício da cidadania e participação democrática. Entretanto, seu uso, cada vez mais intenso e amplo, pode causar um efeito nefasto na esfera privada dos indivíduos, pois viabiliza o monitoramento da vida privada e a invasão da privacidade.

 

É incontestável o choque de direitos fundamentais que o uso da internet pode ocasionar, quando seu uso invade a esfera privada, criando um domínio público de informações, dados e conteúdo. À luz da Constituição Federal, é obrigatória uma interpretação lado a lado do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e a aplicação imediata dos direitos fundamentais, dentre eles o direito à intimidade e à vida privada, violados na era digital, pelo desprestígio à dignidade humana (CF, art. 1º, III).

 

No contexto da sociedade da informação, a internet garante o direito fundamental à informação e livre manifestação – mas também pode ferir o direito fundamental da privacidade, em razão do monitoramento da vida privada e invasão da privacidade. Portanto, quando da colisão de direitos fundamentais – direito à informação e à privacidade – deve-se promover o equilíbrio e a compatibilização através de um juízo de ponderação entre os direitos constitucionalmente garantidos.

 

Em razão da importância e grau de complexidade da análise do caso concreto de colisão de direitos fundamentais, para a prestação jurisdicional justa, torna-se imperioso um juízo de ponderação para a solução do conflito, no qual deve-se considerar, em primeiro lugar, que os direitos fundamentais não possuem natureza absoluta; em segundo, que inexiste prevalência de um sobre o outro.

 

No Brasil, segundo Adalberto Simão Filho[6], a proporcionalidade tem aplicação para garantir a efetividade dos direitos fundamentais e o princípio da dignidade humana, que engloba os mais importantes direitos e valores do homem, deve ser considerado a baliza para o juízo de ponderação entre os direitos à informação e privacidade constitucionalmente garantidos.

 

Com relação ao caráter absoluto dos direitos da personalidade, prevê o Enunciado nº 4 do CJF/STJ, aprovado na I Jornada de Direito Civil, que “o exercício dos direitos da personalidade pode sofrer limitação voluntária, desde que não seja permanente nem geral”. Adotando os exatos termos do enunciado doutrinário, o STJ também se manifestou no sentido de que “o exercício dos direitos da personalidade pode ser objeto de disposição voluntária, desde que não permanente nem geral, estando condicionado à prévia autorização do titular e devendo sua utilização estar de acordo com o contrato estabelecido entre as partes”[7].

 

Sociedade da vigilância

 

Falando um pouco sobre a sociedade da vigilância em que vivemos, a exposição das nossas experiências e relações sociais ocorre constantemente, tendo em vista a agilidade gerada pelo uso das novas tecnologias e facilidade no acesso, divulgação e armazenamento de informações. Nesse sentido, as redes sociais têm exercido um grande papel ao possibilitar novas formas de comunicação e interação entre as pessoas, pois diminuíram a distâncias entre os cidadãos, possibilitando relacionamentos distantes.

 

Atualmente todo comportamento e desejo dos indivíduos tem sido direcionado para a internet e redes sociais, o que demonstra uma rápida migração das interações do espaço físico para o virtual, indicando, assim, novas formas de socialização. No entanto, a internet permite uma coleta de dados em massa e em grande escala, no mais das vezes, autorização e até mesmo sem conhecimento dos titulares desses dados.

 

As pessoas não possuem condições sequer de saber quais dados pessoais estão circulando em bancos de dados, o que faz com que não compreendam como esses dados, convertidos em informações sobre sua intimidade e personalidade são utilizados pelas empresas, e qual impacto sobre suas vidas. E diante dessa quantidade absurda de informações pessoais disponíveis nos mais diversos bancos de dados, há quem questione se atualmente existe o direito à privacidade.

 

Stefano Rodotà[8] chega ao ponto de mencionar que depois do 11 de setembro (fazendo referência ao ataque às Torres Gêmeas do complexo empresarial do World Trade Center, na cidade de Nova Iorque, em 2001), a privacidade não pode mais ser vista como um direito fundamental, pois vista desta forma ela é frequentemente considerada um obstáculo à segurança, sendo que para o autor,

 

a realidade distancia-se cada vez mais do arcabouço dos direitos fundamentais, por conta de três motivos básicos.

Primeiramente, depois do 11 de setembro muitos critérios de referência mudaram e as garantias foram reduzidas em todo o mundo, como demonstra, particularmente, o Patriot Act  nos EUA e as decisões na Europa sobre a transferência para os EUA de dados sobre passageiros de linhas aéreas e sobre a retenção de dados quanto às comunicações eletrônicas.

Em segundo lugar, esta tendência no sentido de diminuir as garantias foi estendida a setores que tentam se beneficiar da mudança do cenário geral – como o mundo dos negócios.

Em terceiro lugar, as novas oportunidades tecnológicas tornam continuamente disponíveis novas ferramentas para a classificação, seleção, triagem e controle de indivíduos, o que resulta numa verdadeira maré tecnológica que as autoridades nacionais e internacionais nem sempre são capazes de controlar adequadamente.

 

Por outro lado, Stefano Rodotà[9] menciona que se for considerado o que aconteceu no último século, é possível descrever um processo de reinvenção da privacidade, baseado na implementação de valores democráticos, os quais podem ser facilmente entendido se considerarmos as diferentes definições de privacidade ao longo do tempo. Isso nos leva a crer que no atual momento em que vivemos, da Sociedade da Informação, talvez a definição de privacidade mereça ser repensada e readequada aos novos tempos.

 

Isso ocorre porque os dados pessoais são os registros de nossas atividades sociais, de nossa personalidade e de nossa intimidade, ou seja, os dados pessoais são registros que nos identificam e que refletem o que somos. Assim, nos oferecemos enquanto moeda de troca nesse mercado digital e nos disponibilizamos a uma série de violações a direitos fundamentais. E nesse particular, é necessário analisar, por fim, se a proteção de dados pode ser enquadrada como um direito da personalidade, questão que passaremos a abordar.

 

Dados Pessoais como um direito fundamental e de personalidade

 

Conforme falamos, os direitos da personalidade caracterizam-se pelo conjunto de características que define e distingue uma pessoa da outra, sendo eles ilimitados, podendo surgir a qualquer momento novos direitos que possa se caracterizar como direitos da personalidade, pelos seus atributos e identidade com a individualidade das pessoas.

 

Em sua proteção constitucional, explica Laura S. Mendes[10], que “a Constituição brasileira apresenta dois importantes mecanismos de tutela da personalidade contra o tratamento indevido de dados: o direito material à proteção de dados pessoais, baseado no art. 5º, X, da CF/88, e a garantia instrumental para a proteção desse direito, consubstanciada na ação do habeas data (art. 5º, LXXII, da CF/88)”. Eis aqui o seu fundamento constitucional.

 

Sendo assim, explica Bruno Bioni[11] que,

 

sob essa perspectiva, um dado, atrelado a esfera de uma pessoa, pode se inserir dentre os direitos da personalidade. Para tanto, ele deve ser adjetivado como pessoal, caracterizando-se como uma projeção, extensão ou dimensão do seu titular. E, nesse sentido, cada vez mais, as atividades de processamento de dados têm ingerência na vida das pessoas. Trata-se de um novo tipo de identidade e, por isso mesmo,  tais dossiês digitais devem externar informações corretas para que seja fidedignamente projetada a identidade do titular daquelas informações. Isso acaba por justificar dogmaticamente a inserção dos dados pessoais na categoria dos direitos da personalidade, assegurando, por exemplo, que uma pessoa exija a retificação de seus dados pessoais para que a sua projeção seja precisa, sendo que os dados pessoais não estão relacionados somente com a privacidade, transitando  dentre mais de uma das espécies dos direitos da personalidade.

 

Nesse sentido, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais abrange sua tutela para todos os tipos de controle de dados pessoais, que possibilitem violações à personalidade dos indivíduos, inclusive quanto aos dados anonimizados. No mais, a LGPD em seu artigo 2º disciplina da proteção de dados pessoais, colocando como fundamentos:

I - o respeito à privacidade;

II - a autodeterminação informativa;

III - a liberdade de expressão, de informação, de comunicação e de opinião;

IV - a inviolabilidade da intimidade, da honra e da imagem;

V - o desenvolvimento econômico e tecnológico e a inovação;

VI - a livre iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor; e

VII - os direitos humanos, o livre desenvolvimento da personalidade, a dignidade e o exercício da cidadania pelas pessoas naturais.

 

Segundo Ramon S. Costa[12], “os dados pessoais configuram-se como uma extensão da personalidade, constituindo elementos substanciais de nossa singularidade, por isso podem ser compreendidos como reflexos pessoais capazes de nos identificar em nossas particularidades e enquanto seres sociais. Disso decorre a importância de elevar a proteção de dados pessoais a um status de direito da personalidade”. E dessa forma, é possível entender que a proteção de dados pessoais insere-se na gama de direitos da personalidade.

 

Segundo Ana Elizabeth L. W. Cavalcanti[13],

O século XXI, com a influência das novas tecnologias, deverá ser lembrado como a Era da Renovação, da redefinição ou revisitação de antigos conceitos, ou seja, a cada dia, novos direitos da personalidade surgem devido às novas temáticas de controvérsias que surgem, muito por conta das novas realidades surgidas por conta das novas tecnologias, citamos como exemplo, a questão da Reprodução Humana Assistida e a questão da Gestação de substituição (barriga de aluguel), da telemedicina, e o sigilo na relação médico-paciente, dos alimentos geneticamente modificados e o direito à informação do consumidor, o direito ao afeto e identidade sexual, o direito ao não sofrimento no momento da morte, o direito ao esquecimento, direito à diferença e, o direito à proteção dos dados pessoais como direito da personalidade.

Vemos, portanto, que os direitos da personalidade não desapareceram ou não sofreram erosão, apenas estão em momento de redesignação quanto ao seu conteúdo e significado. Se antes os direitos da personalidade eram encarados como direitos inerentes ao próprio ser humano e utilizados para defender o indivíduo contra violações de outros particulares, hoje eles devem ser encarados como direitos que protegem as manifestações da pessoa de acordo com a vontade e que exprimem a sua essência, ou seja, quem deseja ser. (grifo nosso)

 

Nota-se que a necessidade de redefinição de antigos conceitos pelos operadores do direito, especialmente em questões de direitos da personalidade, mostra-se extremamente importante para não deixarmos desprotegidas situações que efetivamente carregam em si as características marcantes dos direitos da personalidade, justamente por constituir elemento substancial da singularidade do indivíduo, configurando-se como uma extensão da personalidade, como acontece com o direito à proteção dos dados pessoais, que, por suas características, constitui efetivamente verdadeiro direito da personalidade, merecendo total proteção.

 

Jurisprudência

 

Na jurisprudência, diversos assuntos têm sido tratados em que se discute a privacidade e intimidade dos indivíduos e a proteção de dados como direitos fundamentais e de personalidade. Vejamos recente julgado do STJ, na apreciação do REsp 1859665 / SC[14]:

 

RECURSO ESPECIAL. OBRIGAÇÃO DE FAZER C/C EXIBIÇÃO DE DOCUMENTOS. POSTAGEM DE VÍDEO CONTENDO INFORMAÇÕES ALEGADAMENTE FALSAS, PREJUDICIAIS À IMAGEM DA SOCIEDADE EMPRESÁRIA AUTORA, EM REDE SOCIAL. QUEBRA DO SIGILO DE TODOS OS USUÁRIOS QUE COMPARTILHARAM O CONTEÚDO POTENCIALMENTE DIFAMATÓRIO NA PLATAFORMA DO FACEBOOK. IMPOSSIBILIDADE. PLEITO SEM EXPOSIÇÃO DE FUNDADAS RAZÕES PARA A QUEBRA. MARCO CIVIL DA INTERNET (LEI N. 12.965/2014, ART. 22). PRESERVAÇÃO DA PRIVACIDADE E DO DIREITO AO SIGILO DE DADOS.

1. O Marco Civil da Internet (Lei n. 12.965/2014) estabelece que, na provisão de conexão à internet, cabe ao administrador de sistema autônomo respectivo o dever de manter os registros de conexão sob sigilo, em ambiente controlado e de segurança, pelo prazo de 1 ano, nos termos do regulamento (art. 13); e o provedor de aplicações de internet, custodiar os respectivos registros de acesso a aplicações de internet pelo prazo de 6 meses (art. 15).

2. O propósito da norma foi criar instrumental que consiga, por autoridade constituída e precedida de autorização judicial, acessar os registros de conexão, rastreando e sancionando eventuais condutas ilícitas perpetradas por usuários da internet e inibindo, de alguma forma, a falsa noção de anonimato no uso das redes. Por outro lado, a Lei n. 12.965/2014 possui viés hermenêutico voltado ao zelo pela preservação da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem do usuário (art. 23), com a previsão de cláusula de reserva judicial para qualquer quebra de sigilo.

3. Portanto, se é certo afirmar que o usuário das redes sociais pode livremente reivindicar seu direito fundamental de expressão, também é correto sustentar que a sua liberdade encontrará limites nos direitos da personalidade de outrem, sob pena de abuso em sua autonomia, já que nenhum direito é absoluto, por maior que seja a sua posição de preferência, especialmente se tratar-se de danos a outros direitos de elevada importância.

4. No caso, a autora requereu a suspensão imediata do vídeo disponibilizado em redes sociais no qual um homem, anonimamente, afirmava ter comprado um lanche que estaria contaminado com larvas nas dependências da sua empresa, não sendo tal notícia verdadeira, já que a refeição jamais fora adquirida no estabelecimento da requerente, que, em razão disso, foi afetada em seus negócios e em sua imagem.  Além disso, requereu fosse a empresa de rede social obrigada a fornecer o IP de todos os responsáveis pelo compartilhamento do vídeo difamador.

5. Nos termos da Lei n. 12.965/2014 (art. 22), a parte interessada poderá pleitear ao juízo, com o propósito de formar conjunto probatório em processo judicial cível ou penal, em caráter incidental ou autônomo, que ordene ao responsável pela guarda o fornecimento de registros de conexão ou de registros de acesso a aplicações de internet. Para tanto, sob pena de admissibilidade, exige a norma que haja: I - fundados indícios da ocorrência do ilícito; II - justificativa motivada da utilidade dos registros solicitados para fins de investigação ou instrução probatória; e III - período ao qual se referem os registros (parágrafo único).

6. É vedado ao provedor de aplicações de internet - em pedido genérico e coletivo, sem a especificação mínima de uma conduta ilícita realizada - fornecer dados, de forma indiscriminada, dos usuários que tenham compartilhado determinada postagem.

7. Na espécie, a recorrida não trouxe nenhum elemento, nem sequer descreveu indícios de ilicitude da conduta dos usuários que, por qualquer motivo, acabaram por apenas compartilhar o vídeo com conteúdo difamador, limitando-se a identificar a página do autor da postagem e de um ex-funcionário que também teria publicado o vídeo em seu perfil.

8. Assim, sopesados os direitos envolvidos e o risco potencial de violação de cada um deles, deve prevalecer a privacidade dos usuários. Não se pode subjugar o direito à privacidade a ponto de permitir a quebra indiscriminada do sigilo dos registros, com informações de foro íntimo dos usuários, tão somente pelo fato de terem compartilhado determinado vídeo que, depois se soube, era falso.

9. Recurso especial provido. (Grifo Nosso)

 

            É de se notar que o julgado analisa os interesses envolvidos sob um juízo de ponderação, sopesando os direitos envolvidos e o risco potencial de violação de cada um deles, ao prestigiar o direito à privacidade e do direito ao sigilo de dados. É este, pois, o melhor entendimento quando da análise desses interesses colidentes.

 

Conclusão

 

Diante do que foi exposto, vimos que o tema relacionado a privacidade e intimidade ganhou relevância na atual sociedade da informação, diante das novas possibilidades de exposição ao público, de dados e informações de caráter privado, e ainda, da falsa impressão de inexistência de privacidade em um mundo conectado e “digitalizado”.

 

Isso porque, o fato de haver uma maior exposição das pessoas no ambiente virtual, não lhes retira o amparo aos  ditos direitos de personalidade. Entendemos não ser possível afirmar sem uma prévia análise do caso concreto, se uma divulgação de informações privadas no ambiente digital pode ou não caracterizar uma violação a direitos fundamentais ou individuais, de personalidade. O juízo de ponderação na análise do caso concreto é o que efetivamente vai permitir ao operador do direito definir, diante de conflitos gerados, qual interesse deva prevalecer.

 

O que não resta dúvida e a nós parece algo certo, é o fato de a proteção de dados ter uma relação direta com os direitos de personalidade e direitos fundamentais, merecendo a mesma proteção garantida a estes, na medida em que, como já dito, os dados pessoais configuram-se como uma extensão da personalidade, constituindo elementos substanciais de nossa singularidade, podendo ser compreendidos como reflexos pessoais capazes de nos identificar em nossas particularidades e enquanto seres sociais.

 

Referências

 

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[1] Mestrando em Direito da Sociedade da Informação pelo Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas – FMU (São Paulo). Especialista em Direito Contratual e em Direito Empresarial pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). MBA em Gestão de Negócios pela Universidade de São Paulo (USP). Advogado. E-mail: daniel.machado.dcm@gmail.com Fone: +55 11 99719.3435 CV: http://lattes.cnpq.br/4963633990783363. https://orcid.org/0000-0003-2048-3591.

[2] Doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professora da Graduação em Direito e Mestrado em Direito da Sociedade da Informação do Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas – FMU, em São Paulo. Lattes: http://lattes.cnpq.br/7653309548801946. http://orcid.org/0000-0001-7324-4741 . Endereço eletrônico: aelwc@terra.com.br.

[3] MOLINARO, Carlos Alberto; SARLET, Ingo Wolfgang. Direito à informação e direito de acesso à informação como direitos fundamentais na constituição brasileira. Revista da AGU, Brasília-DF, ano XIII, n. 42, p. 09-38, out./dez. 2014, p. 17. Disponível em: https://repositorio.pucrs.br/dspace/bitstream/10923/11403/2/Direito_a_768_Informac_807_a_771_o_e_Direito_de_Acesso_a_768_Informac_807_a_771_o_como_Direitos_Fundamentais_na.pdf. Acesso em: 30 Ago. 2021.

 

[4] GAGLIANO, Pablo Stolze; FILHO, Rodolfo Pamplona. Manual de Direito Civil, Volume Único. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 67.

[5] TARTUCE, Flávio. Direito Civil: Lei de Introdução e Parte Geral, volume 1. 15ª edição, Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 229.

[6] FILHO, Adalberto Simão; ZACARIAS, Fabiana.  Direito à privacidade na sociedade da informação. Revista Húmus - ISSN 2236-4358: 2019. Disponível em: http://www.periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/revistahumus/article/view/8351/6475. Acesso em: 27 Ago. 2021.

[7] REsp 1.630.851/SP, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, 3.ª Turma, por unanimidade, julgado em 27.04.2017, DJe 22.06.2017.

[8] RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância: A privacidade hoje. Organização, seleção e apresentação de Maria Celina Bodin de Moraes. Tradução: Danilo Doneda e Luciana Cabral Doneda. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 14.

[9] Op. Cit. p. 15.

[10] MENDES, Laura Schertel. Privacidade, proteção de dados e defesa do consumidor: Linhas gerais de um novo direito fundamental. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 173.

[11] BIONI, Bruno Ricardo. Proteção de Dados Pessoais – A Função e os Limites do Consentimento. Rio de Janeiro: Forense, 2019, 2.ª reimpressão, p. 65-66.

[12] COSTA, Ramon Silva; OLIVEIRA, Samuel Rodrigues de. Os direitos da personalidade frente à sociedade de vigilância: privacidade, proteção de dados pessoais e consentimento nas redes sociais. Revista brasileira de direito civil em perspectiva, v. 5, n. 2 (2019), p. 11. Disponível em: https://www.indexlaw.org/index.php/direitocivil/article/view/5778. Acesso em: 27 Ago. 2021.

[13] CAVALCANTI, Ana Elizabeth Lapa Wanderley. Os direitos da personalidade na Sociedade da Informação: Impactos das novas tecnologias. In: LISBOA, Roberto Senise (Org.). O direito na sociedade da informação V – Movimentos sociais, tecnologia e a proteção das pessoas. São Paulo: Almedina, 2020, p. 30.

[14] STJ. REsp 1859665 / SC - RECURSO ESPECIAL 2020/0020800-6. Relator(a): Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO (1140). Órgão Julgador: T4 - QUARTA TURMA. Data do Julgamento: 09/03/2021. Data da Publicação/Fonte: DJe 20/04/2021).

Artigo publicado nos anais do 4º Congresso Internacional Information Society and Law Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU) São Paulo - SP - 3 a 5 de novembro de 2021.
Disponível em: informationsocietyandlaw.files.wordpress.com/2022/11/information-society-and-law-review-4-volume.pdf

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